sábado, 28 de dezembro de 2019

O João Paulo Borges Coelho, na abertura da exposição de Abril-Maio no Centro Cultural Franco-Moçambicano (CCFM) e o seu texto sobre ela











Azevedo: O espanto do real

A pintura de João de Azevedo segue uma estratégia na qual se combinam, em doses fortes como as das cores espessas que a compõem, cargas sexuais, políticas, sociais e mitológicas. Salvo um ou outro caso em que a água dilui e esfuma a cor (quase sempre o cinzento), salvo um ou outro inesperado interesse pelo pormenor (os pequenos triângulos das mandíbulas dos crocodilos), o que ela procura não são transições suaves nem velaturas, mas o confronto aberto de cores fortes, espessas, definitivas; cores que traçam territórios, áreas delimitadas, linhas intransponíveis. É, portanto, uma pintura frontal e assertiva, na violência dos garrotes como na sexualidade vermelha dos cilíndricos falos e das vulvas triangulares, das línguas, lábios e mamilos. Uma pintura com desejo, pressa e fúria.
O pintor desinteressa-se dos fundos, que nos surgem neutros (ou, melhor dizendo, amplas áreas uniformes, porque as cores quase sempre são gritantes) para neles melhor sobressaírem as acções humanas; ou seja, para sobre eles se contar uma história. Há uma maneira muito própria de contar essa história, que de cada vez se traduz, mais do que em temas, em séries que se desdobram com veemência.
As séries, como complemento estritamente técnico da estratégia, trazem-me à memória o pensador raro que foi Walter Benjamim (A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica), traduzindo a modernidade do projecto. Não me é difícil imaginar o pintor atacando vários quadros em simultâneo, ou usando diversos tipos de tintas em também diversos tipos de suporte. Tudo vale para chegar aos outros, mais do que esperar que os outros venham até si. Tudo vale para retirar a aura reservada e mística do quadro e o transformar em instrumento ao serviço do sentido.
Os quadros que compõem as séries (ou melhor, que a vão compondo, uma vez que cada série é “open-ended”), não são os fotogramas sequenciais de um gesto, mas sim diferentes ângulos particulares de uma mesma encenação. Assim, o que perdem em individualidade (narrativas fixas, fechadas sobre si próprias) ganham como elemento que acrescenta e revela sempre novos pormenores a essa encenação – e consequentemente, elemento que as politiza.
Mais do que putativas mensagens, o que faz mover esta pintura são espantos provocados pela descoberta do real. Maravilhamentos, indignações, acusações. Cada série porventura uma marca na vida do pintor. A Mulher-Crocodilo denota a descoberta da mitologia timorense, talvez em contraste com os crocodilos africanos; os Refugiados do Mediterrâneo – aqueles mesmos sobre os quais África mantém o enigmático silêncio de alguém que olha em suspenso as próprias veias abertas pingando, cada gota vermelha uma alma entregue a si própria sem a protecção do continente, e diluindo-se na imensidão das águas – os refugiados do mediterrâneo, dizia, despertam sustos e demónios antigos no coração culpado da Europa (bem no centro desta série está o gesto da infame Petra Laszlo); os Garrotados & Prisioneiros lembram-nos que em toda a parte há grotescos facínoras que com falas mansas de cordeiros se tentam legitimar, malignos vermes traiçoeiros que castigam e matam pela calada quem ousa a nobreza de falar e se exprimir (os quadros convocam as vítimas e desprezam olimpicamente os algozes, como se o esquecimento – a expulsão do espaço do quadro – fosse o prémio que a estes últimos estivesse destinado); há ainda os Guerreiros e o Nyau, séries com as quais o pintor parece ensaiar um regresso ao continente africano e a este país onde ele aportou pela primeira vez, e viveu, há quarenta anos. Nas palhas do Nyau vejo, aliás, as mesmas cores que nas penas dos Ícaros (a primeira série que lhe conheço), como se assim se encerrasse um ciclo largo. A reforçar esta ideia, há ainda os pontilhados decorativos, de certo modo africanos e evocando os pintores aborígenes australianos.
Olho as formas, com o meu olhar de visitante, e vem-me à ideia uma jovialidade de Andy Wahrol ou um optimismo de Roy Lichtenstein que tivessem sido distorcidos pela ansiedade de Francis Bacon e, em momentos mais raros, pelo lirismo de Fernand Léger. Vejo ainda perfis angulosos a fazer lembrar certos desenhos de António Quadros. E, pairando na sala, sempre, a sombra de Jacques Lacan.

Maputo, Abril 2018                                                               João Paulo Borges Coelho

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