METAMORFOSES DO GRITO
São
melancólicos, os crocodilos? Um engano a avaliar pela velocidade de disparo no
encalço da vítima, dez segundos aos cem metros. Também as mãos de João de Azevedo
se apresentam destras e velozes – em poucos traços prodigalizam a síntese.
Porque
é um artista de sínteses e do silêncio, o João. Ou melhor: que cromatiza esse
silêncio atordoado que antecede o grito. Ou aquele que imediatamente, e
purificado, lhe sucede. Daí a sua propensão a ser garrido: transporte na alegria, lhe chamaria o poeta Ruy Belo.
Mas
o que faz funcionar o impulso carnavalesco das suas cores é a força do silêncio
que as envolve. Eis um pintor que fracciona as bandas de cores, para
descortinar nelas o que lhes sobrou do invisível, e que não teme o vazio, jogando
(brincando) luxuosamente com essa tensão entre as figuras que projecta e o
espaço congelado que as rodeia.
Ícaro
(uma das suas figuras mais recorrentes) não caiu por causa do sol. Isso é dá-lo
por estúpido. Ícaro caiu porque o seu grito ricocheteava no silêncio. O qual
graficamente se resolve no intervalo entre as figuras. E o João de Azevedo é
mestre nesse equilíbrio entre o múltiplo recheio das figuras – uma floração de
padrões e de intensidades cromáticas – e o manto de silêncio, dir-se-ia
ascético, que as recorta.
Julgo
que isto sucede devido a poder-se-lhe reconhecer uma dimensão trágica “à moda
antiga”, como a reivindicaram Nietzsche e Clément Rosset, a qual funde a dor e
o riso, o patetismo e a pungência da alegria. Espanta que os seus temas,
afrontosamente sociais, reportem todos a situações-extremas: a queda de Ícaro
(o desmantelamento dos símbolos da esperança), o garrote que tortura os
prisioneiros políticos, a violenta sina dos refugiados, no mar ou em terra? Mesmo
o erotismo das suas ninfas e mulheres-crocodilo conhece a ambivalência do
desejo e da fúria que incuba as metamorfoses e se evade de uma representação
que o cristalize – e assim foge à sua morte (que também é social). João de Azevedo
incorpora as lancinantes contradições do seu tempo e ao imenso horror do mundo que
expõe opõe o pintor a sua truculência, rabelaisiana.
Em
tempos idos, durante décadas, o João de Azevedo, por causa das suas convicções
políticas, renunciou à pintura. Parecia-lhe que a arte se transformara numa
tagarelice burguesa e não se consentia a produzir ostras de aviário. Um dia foi
a Timor, apaixonou-se pelos crocodilos e desatou a pintar.
Entusiasticamente
- o seu olhar afiado não se havia rendido -, o que lhe valeu voltar em modo
condensado, sabendo o que rejeitava e o que lhe poderia devolver a
singularidade, cunhar a sua diferença.
Uma
das suas inegáveis qualidades de pintor é que nele “o estilo é por si só uma
maneira de ver as coisas”. Talvez surpreenda ao João saber que a frase atrás
citada é de Flaubert e não dos surrealistas, de quem estaria mais próximo, mas da
frase retenha-se a indiscernibilidade entre estilo e modo de ver; sendo, quanto
a mim, o que explica que nos seus quadros, profusos em cor e em formas, não
haja um só traço a mais, supérfluo – a sua parafernália circense exprime-se com
a contenção do fogo preso.
É
a qualidade de quem enfrentou o transe e oscila entre a voz xamânica e uma
certa derrisão neo-dada. Como acontece às criaturas que sem perder a infantil e
encantatória capacidade de crença não abdicaram da distância da lucidez.
Dario
Micacchi, um crítico italiano, a meu ver acertou na genealogia de Azevedo: foi
a Klee beber o registo quase diagramático, inspirou-se na “bruteza” dos traços
de Dubuffet, deve a Otto Dix e a Grosz a violência caricatural e a arte da bricolage. E a estes antepassados
acrescentaria que o pintor também absorveu a expressão clânica ou a “teoria
plástica das multidões” de Malangatana e o animismo dos pintores aborígenes
australianos. Porém, o que é notável é ele lembrar-nos esses criadores e ao
mesmo tempo preservar uma tão afirmada personalidade pictórica, só sua. Ou
seja, João de Azevedo fez a síntese e magicamente delicia-nos, como todos os
feixes de energia que se locomovem na água e embebem as raízes até que a
árvore, impaciente, se põe a andar ou voa.
Ouviram
por aí um cuco?
É
o crocodilo do João a ensaiar um grito.
Ou
talvez o griot tenha achado o seu
silêncio.
Maputo,
António
Cabrita
Abril
2018
Sem comentários:
Enviar um comentário