EXORCISMO
À
primeira vista, estes anjos são terrenos. Começam por não ser anjos, porque os
ícaros são seres humanos. Mas passaram por uma metamorfose em anjos. As asas já
fazem parte do seu corpo, o voo e a queda tornaram-se uma dança de cores. E têm
sexo, estes anjos que são mulheres e homens. A melancolia, por isso, não os
atinge. Reina entre eles uma saudável loucura, uma alegria desatada. Habitam
uma versão floresta-virgem do paraíso, isto é, daquele mundo aonde sobem os homens
que se tornam imortais quando voam.
Se
revirmos os anjos do disco de José Afonso que João de Azevedo pintou nos anos
70, Com as Minhas Tamanquinhas, percebemos que eles eram uma imaginação
feliz, porque então tudo fazia sentido. Hoje, os ícaros estão remontados, é como
se tivessem voltado a voar depois de se terem despedaçado no chão. A sua
energia é extraordinária mas sem esperança. Os ícaros transformam-se sempre que
caem. Voam, mudam, caem, tornam a levantar voo e mudam outra vez. E as cores
voam com eles.
Pintar
ícaros é pintar a aventura essencial, pelo que as suas são as cores puras. No
teatro das operações de busca do que não existe – e, portanto, não se pode
encontrar –, o que é importante é a pureza das cores e do movimento.
Os anjos-ícaros
de João de Azevedo estão ampliados, fora de foco. As suas cores transtornadas espantam
e exaltam, e a sua explosão é uma libertação. Há uma violência qualquer que as
arrasta – nós sentimos-lhe o rumor, o tremor. No mundo à volta das pinturas
também não há mais nada a não ser uma persistente violência. Estamos sob uma redoma
de protecção, que é muito parecida com um cogumelo atómico. Ninguém faz ondas
demais, para que alguém não resolva usar a bomba suja. Daquelas que rapam um
bocado do planeta. Mas esta redoma sugere um adormecimento da pulsão de morte,
à escala colectiva e permanente. E ninguém sabe se tal coisa é possível, não
parece nada, porque a violência progride sempre até ao limite. Ainda agora, pelo
youtube, as cores mais fortes, o laranja, o preto, esfaqueiam a plena luz do
deserto.
Estes
homens e mulheres alados são a apoteose de uma experiência da actualidade. Não lhes
interessa a moral, que é aquele conjunto de regras que servem para nos defendermos
do que é obscuro e instável. Para a sua inteligência, a queda é a única moeda que
paga o voo.
Afinal,
isto pode ser trágico, mas – deve ter sido o que Ícaro ele-próprio pensou enquanto
caía no mar – um instante no cimo do mundo é mais do que um século em cima dos
pés.
Estes
anjos convocam a violência das cores como o último exorcismo.
Fernando Cabral Martins, Lisboa, Abril 2015
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