Azevedo: O espanto do real
A pintura de João de Azevedo segue uma
estratégia na qual se combinam, em doses fortes como as das cores espessas que
a compõem, cargas sexuais, políticas, sociais e mitológicas. Salvo um ou outro
caso em que a água dilui e esfuma a cor (quase sempre o cinzento), salvo um ou
outro inesperado interesse pelo pormenor (os pequenos triângulos das mandíbulas
dos crocodilos), o que ela procura não são transições suaves nem velaturas, mas
o confronto aberto de cores fortes, espessas, definitivas; cores que traçam
territórios, áreas delimitadas, linhas intransponíveis. É, portanto, uma
pintura frontal e assertiva, na violência dos garrotes como na sexualidade
vermelha dos cilíndricos falos e das vulvas triangulares, das línguas, lábios e
mamilos. Uma pintura com desejo, pressa e fúria.
O pintor desinteressa-se dos fundos, que
nos surgem neutros (ou, melhor dizendo, amplas áreas uniformes, porque as cores
quase sempre são gritantes) para neles melhor sobressaírem as acções humanas;
ou seja, para sobre eles se contar uma história. Há uma maneira muito própria
de contar essa história, que de cada vez se traduz, mais do que em temas, em
séries que se desdobram com veemência.
As séries, como complemento estritamente
técnico da estratégia, trazem-me à memória o pensador raro que foi Walter
Benjamim (A Obra de Arte na Era da
Reprodutibilidade Técnica), traduzindo a modernidade do projecto. Não me é
difícil imaginar o pintor atacando
vários quadros em simultâneo, ou usando diversos tipos de tintas em também
diversos tipos de suporte. Tudo vale para chegar aos outros, mais do que
esperar que os outros venham até si. Tudo vale para retirar a aura reservada e mística
do quadro e o transformar em instrumento ao serviço do sentido.
Os quadros que compõem as séries (ou
melhor, que a vão compondo, uma vez que cada série é “open-ended”), não são os
fotogramas sequenciais de um gesto, mas sim diferentes ângulos particulares de
uma mesma encenação. Assim, o que perdem em individualidade (narrativas fixas, fechadas
sobre si próprias) ganham como elemento que acrescenta e revela sempre novos
pormenores a essa encenação – e consequentemente, elemento que as politiza.
Mais do que putativas mensagens, o que
faz mover esta pintura são espantos provocados pela descoberta do real. Maravilhamentos,
indignações, acusações. Cada série porventura uma marca na vida do pintor. A Mulher-Crocodilo denota a descoberta da
mitologia timorense, talvez em contraste com os crocodilos africanos; os Refugiados do Mediterrâneo – aqueles
mesmos sobre os quais África mantém o enigmático silêncio de alguém que olha em
suspenso as próprias veias abertas pingando, cada gota vermelha uma alma
entregue a si própria sem a protecção do continente, e diluindo-se na imensidão
das águas – os refugiados do mediterrâneo, dizia, despertam sustos e demónios
antigos no coração culpado da Europa (bem no centro desta série está o gesto da
infame Petra Laszlo); os Garrotados &
Prisioneiros lembram-nos que em toda a parte há grotescos facínoras que com
falas mansas de cordeiros se tentam legitimar, malignos vermes traiçoeiros que
castigam e matam pela calada quem ousa a nobreza de falar e se exprimir (os
quadros convocam as vítimas e desprezam olimpicamente os algozes, como se o
esquecimento – a expulsão do espaço do quadro – fosse o prémio que a estes
últimos estivesse destinado); há ainda os Guerreiros
e o Nyau, séries com as quais o
pintor parece ensaiar um regresso ao continente africano e a este país onde ele
aportou pela primeira vez, e viveu, há quarenta anos. Nas palhas do Nyau vejo, aliás, as mesmas cores que
nas penas dos Ícaros (a primeira
série que lhe conheço), como se assim se encerrasse um ciclo largo. A reforçar
esta ideia, há ainda os pontilhados decorativos, de certo modo africanos e
evocando os pintores aborígenes australianos.
Olho as formas, com o meu olhar de
visitante, e vem-me à ideia uma jovialidade de Andy Wahrol ou um optimismo de
Roy Lichtenstein que tivessem sido distorcidos pela ansiedade de Francis Bacon
e, em momentos mais raros, pelo lirismo de Fernand Léger. Vejo ainda perfis
angulosos a fazer lembrar certos desenhos de António Quadros. E, pairando na
sala, sempre, a sombra de Jacques Lacan.
Maputo, Abril
2018 João
Paulo Borges Coelho
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