sábado, 28 de dezembro de 2019

O António Cabrita na abertura da exposição no Centro Cultural Franco-Moçambicano (CCFM) - Abril 2018




METAMORFOSES DO GRITO

São melancólicos, os crocodilos? Um engano a avaliar pela velocidade de disparo no encalço da vítima, dez segundos aos cem metros. Também as mãos de João de Azevedo se apresentam destras e velozes – em poucos traços prodigalizam a síntese.
Porque é um artista de sínteses e do silêncio, o João. Ou melhor: que cromatiza esse silêncio atordoado que antecede o grito. Ou aquele que imediatamente, e purificado, lhe sucede. Daí a sua propensão a ser garrido: transporte na alegria, lhe chamaria o poeta Ruy Belo.
Mas o que faz funcionar o impulso carnavalesco das suas cores é a força do silêncio que as envolve. Eis um pintor que fracciona as bandas de cores, para descortinar nelas o que lhes sobrou do invisível, e que não teme o vazio, jogando (brincando) luxuosamente com essa tensão entre as figuras que projecta e o espaço congelado que as rodeia.
Ícaro (uma das suas figuras mais recorrentes) não caiu por causa do sol. Isso é dá-lo por estúpido. Ícaro caiu porque o seu grito ricocheteava no silêncio. O qual graficamente se resolve no intervalo entre as figuras. E o João de Azevedo é mestre nesse equilíbrio entre o múltiplo recheio das figuras – uma floração de padrões e de intensidades cromáticas – e o manto de silêncio, dir-se-ia ascético, que as recorta.
Julgo que isto sucede devido a poder-se-lhe reconhecer uma dimensão trágica “à moda antiga”, como a reivindicaram Nietzsche e Clément Rosset, a qual funde a dor e o riso, o patetismo e a pungência da alegria. Espanta que os seus temas, afrontosamente sociais, reportem todos a situações-extremas: a queda de Ícaro (o desmantelamento dos símbolos da esperança), o garrote que tortura os prisioneiros políticos, a violenta sina dos refugiados, no mar ou em terra? Mesmo o erotismo das suas ninfas e mulheres-crocodilo conhece a ambivalência do desejo e da fúria que incuba as metamorfoses e se evade de uma representação que o cristalize – e assim foge à sua morte (que também é social). João de Azevedo incorpora as lancinantes contradições do seu tempo e ao imenso horror do mundo que expõe opõe o pintor a sua truculência, rabelaisiana.
Em tempos idos, durante décadas, o João de Azevedo, por causa das suas convicções políticas, renunciou à pintura. Parecia-lhe que a arte se transformara numa tagarelice burguesa e não se consentia a produzir ostras de aviário. Um dia foi a Timor, apaixonou-se pelos crocodilos e desatou a pintar.
Entusiasticamente - o seu olhar afiado não se havia rendido -, o que lhe valeu voltar em modo condensado, sabendo o que rejeitava e o que lhe poderia devolver a singularidade, cunhar a sua diferença.
Uma das suas inegáveis qualidades de pintor é que nele “o estilo é por si só uma maneira de ver as coisas”. Talvez surpreenda ao João saber que a frase atrás citada é de Flaubert e não dos surrealistas, de quem estaria mais próximo, mas da frase retenha-se a indiscernibilidade entre estilo e modo de ver; sendo, quanto a mim, o que explica que nos seus quadros, profusos em cor e em formas, não haja um só traço a mais, supérfluo – a sua parafernália circense exprime-se com a contenção do fogo preso.
É a qualidade de quem enfrentou o transe e oscila entre a voz xamânica e uma certa derrisão neo-dada. Como acontece às criaturas que sem perder a infantil e encantatória capacidade de crença não abdicaram da distância da lucidez.
Dario Micacchi, um crítico italiano, a meu ver acertou na genealogia de Azevedo: foi a Klee beber o registo quase diagramático, inspirou-se na “bruteza” dos traços de Dubuffet, deve a Otto Dix e a Grosz a violência caricatural e a arte da bricolage. E a estes antepassados acrescentaria que o pintor também absorveu a expressão clânica ou a “teoria plástica das multidões” de Malangatana e o animismo dos pintores aborígenes australianos. Porém, o que é notável é ele lembrar-nos esses criadores e ao mesmo tempo preservar uma tão afirmada personalidade pictórica, só sua. Ou seja, João de Azevedo fez a síntese e magicamente delicia-nos, como todos os feixes de energia que se locomovem na água e embebem as raízes até que a árvore, impaciente, se põe a andar ou voa.
Ouviram por aí um cuco?
É o crocodilo do João a ensaiar um grito.
Ou talvez o griot tenha achado o seu silêncio.

Maputo,
António Cabrita
Abril 2018

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