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segunda-feira, 30 de dezembro de 2019
sábado, 28 de dezembro de 2019
O João Paulo Borges Coelho, na abertura da exposição de Abril-Maio no Centro Cultural Franco-Moçambicano (CCFM) e o seu texto sobre ela
Azevedo: O espanto do real
A pintura de João de Azevedo segue uma
estratégia na qual se combinam, em doses fortes como as das cores espessas que
a compõem, cargas sexuais, políticas, sociais e mitológicas. Salvo um ou outro
caso em que a água dilui e esfuma a cor (quase sempre o cinzento), salvo um ou
outro inesperado interesse pelo pormenor (os pequenos triângulos das mandíbulas
dos crocodilos), o que ela procura não são transições suaves nem velaturas, mas
o confronto aberto de cores fortes, espessas, definitivas; cores que traçam
territórios, áreas delimitadas, linhas intransponíveis. É, portanto, uma
pintura frontal e assertiva, na violência dos garrotes como na sexualidade
vermelha dos cilíndricos falos e das vulvas triangulares, das línguas, lábios e
mamilos. Uma pintura com desejo, pressa e fúria.
O pintor desinteressa-se dos fundos, que
nos surgem neutros (ou, melhor dizendo, amplas áreas uniformes, porque as cores
quase sempre são gritantes) para neles melhor sobressaírem as acções humanas;
ou seja, para sobre eles se contar uma história. Há uma maneira muito própria
de contar essa história, que de cada vez se traduz, mais do que em temas, em
séries que se desdobram com veemência.
As séries, como complemento estritamente
técnico da estratégia, trazem-me à memória o pensador raro que foi Walter
Benjamim (A Obra de Arte na Era da
Reprodutibilidade Técnica), traduzindo a modernidade do projecto. Não me é
difícil imaginar o pintor atacando
vários quadros em simultâneo, ou usando diversos tipos de tintas em também
diversos tipos de suporte. Tudo vale para chegar aos outros, mais do que
esperar que os outros venham até si. Tudo vale para retirar a aura reservada e mística
do quadro e o transformar em instrumento ao serviço do sentido.
Os quadros que compõem as séries (ou
melhor, que a vão compondo, uma vez que cada série é “open-ended”), não são os
fotogramas sequenciais de um gesto, mas sim diferentes ângulos particulares de
uma mesma encenação. Assim, o que perdem em individualidade (narrativas fixas, fechadas
sobre si próprias) ganham como elemento que acrescenta e revela sempre novos
pormenores a essa encenação – e consequentemente, elemento que as politiza.
Mais do que putativas mensagens, o que
faz mover esta pintura são espantos provocados pela descoberta do real. Maravilhamentos,
indignações, acusações. Cada série porventura uma marca na vida do pintor. A Mulher-Crocodilo denota a descoberta da
mitologia timorense, talvez em contraste com os crocodilos africanos; os Refugiados do Mediterrâneo – aqueles
mesmos sobre os quais África mantém o enigmático silêncio de alguém que olha em
suspenso as próprias veias abertas pingando, cada gota vermelha uma alma
entregue a si própria sem a protecção do continente, e diluindo-se na imensidão
das águas – os refugiados do mediterrâneo, dizia, despertam sustos e demónios
antigos no coração culpado da Europa (bem no centro desta série está o gesto da
infame Petra Laszlo); os Garrotados &
Prisioneiros lembram-nos que em toda a parte há grotescos facínoras que com
falas mansas de cordeiros se tentam legitimar, malignos vermes traiçoeiros que
castigam e matam pela calada quem ousa a nobreza de falar e se exprimir (os
quadros convocam as vítimas e desprezam olimpicamente os algozes, como se o
esquecimento – a expulsão do espaço do quadro – fosse o prémio que a estes
últimos estivesse destinado); há ainda os Guerreiros
e o Nyau, séries com as quais o
pintor parece ensaiar um regresso ao continente africano e a este país onde ele
aportou pela primeira vez, e viveu, há quarenta anos. Nas palhas do Nyau vejo, aliás, as mesmas cores que
nas penas dos Ícaros (a primeira
série que lhe conheço), como se assim se encerrasse um ciclo largo. A reforçar
esta ideia, há ainda os pontilhados decorativos, de certo modo africanos e
evocando os pintores aborígenes australianos.
Olho as formas, com o meu olhar de
visitante, e vem-me à ideia uma jovialidade de Andy Wahrol ou um optimismo de
Roy Lichtenstein que tivessem sido distorcidos pela ansiedade de Francis Bacon
e, em momentos mais raros, pelo lirismo de Fernand Léger. Vejo ainda perfis
angulosos a fazer lembrar certos desenhos de António Quadros. E, pairando na
sala, sempre, a sombra de Jacques Lacan.
Maputo, Abril
2018 João
Paulo Borges Coelho
O António Cabrita na abertura da exposição no Centro Cultural Franco-Moçambicano (CCFM) - Abril 2018
METAMORFOSES DO GRITO
São
melancólicos, os crocodilos? Um engano a avaliar pela velocidade de disparo no
encalço da vítima, dez segundos aos cem metros. Também as mãos de João de Azevedo
se apresentam destras e velozes – em poucos traços prodigalizam a síntese.
Porque
é um artista de sínteses e do silêncio, o João. Ou melhor: que cromatiza esse
silêncio atordoado que antecede o grito. Ou aquele que imediatamente, e
purificado, lhe sucede. Daí a sua propensão a ser garrido: transporte na alegria, lhe chamaria o poeta Ruy Belo.
Mas
o que faz funcionar o impulso carnavalesco das suas cores é a força do silêncio
que as envolve. Eis um pintor que fracciona as bandas de cores, para
descortinar nelas o que lhes sobrou do invisível, e que não teme o vazio, jogando
(brincando) luxuosamente com essa tensão entre as figuras que projecta e o
espaço congelado que as rodeia.
Ícaro
(uma das suas figuras mais recorrentes) não caiu por causa do sol. Isso é dá-lo
por estúpido. Ícaro caiu porque o seu grito ricocheteava no silêncio. O qual
graficamente se resolve no intervalo entre as figuras. E o João de Azevedo é
mestre nesse equilíbrio entre o múltiplo recheio das figuras – uma floração de
padrões e de intensidades cromáticas – e o manto de silêncio, dir-se-ia
ascético, que as recorta.
Julgo
que isto sucede devido a poder-se-lhe reconhecer uma dimensão trágica “à moda
antiga”, como a reivindicaram Nietzsche e Clément Rosset, a qual funde a dor e
o riso, o patetismo e a pungência da alegria. Espanta que os seus temas,
afrontosamente sociais, reportem todos a situações-extremas: a queda de Ícaro
(o desmantelamento dos símbolos da esperança), o garrote que tortura os
prisioneiros políticos, a violenta sina dos refugiados, no mar ou em terra? Mesmo
o erotismo das suas ninfas e mulheres-crocodilo conhece a ambivalência do
desejo e da fúria que incuba as metamorfoses e se evade de uma representação
que o cristalize – e assim foge à sua morte (que também é social). João de Azevedo
incorpora as lancinantes contradições do seu tempo e ao imenso horror do mundo que
expõe opõe o pintor a sua truculência, rabelaisiana.
Em
tempos idos, durante décadas, o João de Azevedo, por causa das suas convicções
políticas, renunciou à pintura. Parecia-lhe que a arte se transformara numa
tagarelice burguesa e não se consentia a produzir ostras de aviário. Um dia foi
a Timor, apaixonou-se pelos crocodilos e desatou a pintar.
Entusiasticamente
- o seu olhar afiado não se havia rendido -, o que lhe valeu voltar em modo
condensado, sabendo o que rejeitava e o que lhe poderia devolver a
singularidade, cunhar a sua diferença.
Uma
das suas inegáveis qualidades de pintor é que nele “o estilo é por si só uma
maneira de ver as coisas”. Talvez surpreenda ao João saber que a frase atrás
citada é de Flaubert e não dos surrealistas, de quem estaria mais próximo, mas da
frase retenha-se a indiscernibilidade entre estilo e modo de ver; sendo, quanto
a mim, o que explica que nos seus quadros, profusos em cor e em formas, não
haja um só traço a mais, supérfluo – a sua parafernália circense exprime-se com
a contenção do fogo preso.
É
a qualidade de quem enfrentou o transe e oscila entre a voz xamânica e uma
certa derrisão neo-dada. Como acontece às criaturas que sem perder a infantil e
encantatória capacidade de crença não abdicaram da distância da lucidez.
Dario
Micacchi, um crítico italiano, a meu ver acertou na genealogia de Azevedo: foi
a Klee beber o registo quase diagramático, inspirou-se na “bruteza” dos traços
de Dubuffet, deve a Otto Dix e a Grosz a violência caricatural e a arte da bricolage. E a estes antepassados
acrescentaria que o pintor também absorveu a expressão clânica ou a “teoria
plástica das multidões” de Malangatana e o animismo dos pintores aborígenes
australianos. Porém, o que é notável é ele lembrar-nos esses criadores e ao
mesmo tempo preservar uma tão afirmada personalidade pictórica, só sua. Ou
seja, João de Azevedo fez a síntese e magicamente delicia-nos, como todos os
feixes de energia que se locomovem na água e embebem as raízes até que a
árvore, impaciente, se põe a andar ou voa.
Ouviram
por aí um cuco?
É
o crocodilo do João a ensaiar um grito.
Ou
talvez o griot tenha achado o seu
silêncio.
Maputo,
António
Cabrita
Abril
2018
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