sábado, 28 de dezembro de 2019

Também este ano: capa da Agenda SOS Racismo 2020. Este ano dedicada aos genocídios modernos e actuais....



Na exposição de Setúbal: da série Ó Zeca canta para o povo. Estes dois quadros em baixo, juntamente com outros dois da mesma série, estão hoje na parede do fundo da Associação José Afonso (AJA) em Lisboa, ali em S.Bento, em frente das escadarias da Assembleia de República.



Anúncio da exposição e do lançamento do livro na Casa da Cultura em Setúbal, 2 de Agosto de 2019


O livro Taxi está à venda (melhores livrarias, mas mesmo na FNAC)


Uma longa série de Taxis, na exposição em Agosto de 2019 na Casa da Cultura de Setúbal, ocasião para a apresentação do livro TAXI, de Fernando Cabral Martins e João de Azevedo























OS DOIS CARTAZES DA EXPOSIÇÃO EM MAPUTO, ABRIL-MAIO 2018 NO CENTRO CULTURAL FRANCO-MOÇAMBICANO (CCFM)



O João Paulo Borges Coelho, na abertura da exposição de Abril-Maio no Centro Cultural Franco-Moçambicano (CCFM) e o seu texto sobre ela











Azevedo: O espanto do real

A pintura de João de Azevedo segue uma estratégia na qual se combinam, em doses fortes como as das cores espessas que a compõem, cargas sexuais, políticas, sociais e mitológicas. Salvo um ou outro caso em que a água dilui e esfuma a cor (quase sempre o cinzento), salvo um ou outro inesperado interesse pelo pormenor (os pequenos triângulos das mandíbulas dos crocodilos), o que ela procura não são transições suaves nem velaturas, mas o confronto aberto de cores fortes, espessas, definitivas; cores que traçam territórios, áreas delimitadas, linhas intransponíveis. É, portanto, uma pintura frontal e assertiva, na violência dos garrotes como na sexualidade vermelha dos cilíndricos falos e das vulvas triangulares, das línguas, lábios e mamilos. Uma pintura com desejo, pressa e fúria.
O pintor desinteressa-se dos fundos, que nos surgem neutros (ou, melhor dizendo, amplas áreas uniformes, porque as cores quase sempre são gritantes) para neles melhor sobressaírem as acções humanas; ou seja, para sobre eles se contar uma história. Há uma maneira muito própria de contar essa história, que de cada vez se traduz, mais do que em temas, em séries que se desdobram com veemência.
As séries, como complemento estritamente técnico da estratégia, trazem-me à memória o pensador raro que foi Walter Benjamim (A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica), traduzindo a modernidade do projecto. Não me é difícil imaginar o pintor atacando vários quadros em simultâneo, ou usando diversos tipos de tintas em também diversos tipos de suporte. Tudo vale para chegar aos outros, mais do que esperar que os outros venham até si. Tudo vale para retirar a aura reservada e mística do quadro e o transformar em instrumento ao serviço do sentido.
Os quadros que compõem as séries (ou melhor, que a vão compondo, uma vez que cada série é “open-ended”), não são os fotogramas sequenciais de um gesto, mas sim diferentes ângulos particulares de uma mesma encenação. Assim, o que perdem em individualidade (narrativas fixas, fechadas sobre si próprias) ganham como elemento que acrescenta e revela sempre novos pormenores a essa encenação – e consequentemente, elemento que as politiza.
Mais do que putativas mensagens, o que faz mover esta pintura são espantos provocados pela descoberta do real. Maravilhamentos, indignações, acusações. Cada série porventura uma marca na vida do pintor. A Mulher-Crocodilo denota a descoberta da mitologia timorense, talvez em contraste com os crocodilos africanos; os Refugiados do Mediterrâneo – aqueles mesmos sobre os quais África mantém o enigmático silêncio de alguém que olha em suspenso as próprias veias abertas pingando, cada gota vermelha uma alma entregue a si própria sem a protecção do continente, e diluindo-se na imensidão das águas – os refugiados do mediterrâneo, dizia, despertam sustos e demónios antigos no coração culpado da Europa (bem no centro desta série está o gesto da infame Petra Laszlo); os Garrotados & Prisioneiros lembram-nos que em toda a parte há grotescos facínoras que com falas mansas de cordeiros se tentam legitimar, malignos vermes traiçoeiros que castigam e matam pela calada quem ousa a nobreza de falar e se exprimir (os quadros convocam as vítimas e desprezam olimpicamente os algozes, como se o esquecimento – a expulsão do espaço do quadro – fosse o prémio que a estes últimos estivesse destinado); há ainda os Guerreiros e o Nyau, séries com as quais o pintor parece ensaiar um regresso ao continente africano e a este país onde ele aportou pela primeira vez, e viveu, há quarenta anos. Nas palhas do Nyau vejo, aliás, as mesmas cores que nas penas dos Ícaros (a primeira série que lhe conheço), como se assim se encerrasse um ciclo largo. A reforçar esta ideia, há ainda os pontilhados decorativos, de certo modo africanos e evocando os pintores aborígenes australianos.
Olho as formas, com o meu olhar de visitante, e vem-me à ideia uma jovialidade de Andy Wahrol ou um optimismo de Roy Lichtenstein que tivessem sido distorcidos pela ansiedade de Francis Bacon e, em momentos mais raros, pelo lirismo de Fernand Léger. Vejo ainda perfis angulosos a fazer lembrar certos desenhos de António Quadros. E, pairando na sala, sempre, a sombra de Jacques Lacan.

Maputo, Abril 2018                                                               João Paulo Borges Coelho

O António Cabrita na abertura da exposição no Centro Cultural Franco-Moçambicano (CCFM) - Abril 2018




METAMORFOSES DO GRITO

São melancólicos, os crocodilos? Um engano a avaliar pela velocidade de disparo no encalço da vítima, dez segundos aos cem metros. Também as mãos de João de Azevedo se apresentam destras e velozes – em poucos traços prodigalizam a síntese.
Porque é um artista de sínteses e do silêncio, o João. Ou melhor: que cromatiza esse silêncio atordoado que antecede o grito. Ou aquele que imediatamente, e purificado, lhe sucede. Daí a sua propensão a ser garrido: transporte na alegria, lhe chamaria o poeta Ruy Belo.
Mas o que faz funcionar o impulso carnavalesco das suas cores é a força do silêncio que as envolve. Eis um pintor que fracciona as bandas de cores, para descortinar nelas o que lhes sobrou do invisível, e que não teme o vazio, jogando (brincando) luxuosamente com essa tensão entre as figuras que projecta e o espaço congelado que as rodeia.
Ícaro (uma das suas figuras mais recorrentes) não caiu por causa do sol. Isso é dá-lo por estúpido. Ícaro caiu porque o seu grito ricocheteava no silêncio. O qual graficamente se resolve no intervalo entre as figuras. E o João de Azevedo é mestre nesse equilíbrio entre o múltiplo recheio das figuras – uma floração de padrões e de intensidades cromáticas – e o manto de silêncio, dir-se-ia ascético, que as recorta.
Julgo que isto sucede devido a poder-se-lhe reconhecer uma dimensão trágica “à moda antiga”, como a reivindicaram Nietzsche e Clément Rosset, a qual funde a dor e o riso, o patetismo e a pungência da alegria. Espanta que os seus temas, afrontosamente sociais, reportem todos a situações-extremas: a queda de Ícaro (o desmantelamento dos símbolos da esperança), o garrote que tortura os prisioneiros políticos, a violenta sina dos refugiados, no mar ou em terra? Mesmo o erotismo das suas ninfas e mulheres-crocodilo conhece a ambivalência do desejo e da fúria que incuba as metamorfoses e se evade de uma representação que o cristalize – e assim foge à sua morte (que também é social). João de Azevedo incorpora as lancinantes contradições do seu tempo e ao imenso horror do mundo que expõe opõe o pintor a sua truculência, rabelaisiana.
Em tempos idos, durante décadas, o João de Azevedo, por causa das suas convicções políticas, renunciou à pintura. Parecia-lhe que a arte se transformara numa tagarelice burguesa e não se consentia a produzir ostras de aviário. Um dia foi a Timor, apaixonou-se pelos crocodilos e desatou a pintar.
Entusiasticamente - o seu olhar afiado não se havia rendido -, o que lhe valeu voltar em modo condensado, sabendo o que rejeitava e o que lhe poderia devolver a singularidade, cunhar a sua diferença.
Uma das suas inegáveis qualidades de pintor é que nele “o estilo é por si só uma maneira de ver as coisas”. Talvez surpreenda ao João saber que a frase atrás citada é de Flaubert e não dos surrealistas, de quem estaria mais próximo, mas da frase retenha-se a indiscernibilidade entre estilo e modo de ver; sendo, quanto a mim, o que explica que nos seus quadros, profusos em cor e em formas, não haja um só traço a mais, supérfluo – a sua parafernália circense exprime-se com a contenção do fogo preso.
É a qualidade de quem enfrentou o transe e oscila entre a voz xamânica e uma certa derrisão neo-dada. Como acontece às criaturas que sem perder a infantil e encantatória capacidade de crença não abdicaram da distância da lucidez.
Dario Micacchi, um crítico italiano, a meu ver acertou na genealogia de Azevedo: foi a Klee beber o registo quase diagramático, inspirou-se na “bruteza” dos traços de Dubuffet, deve a Otto Dix e a Grosz a violência caricatural e a arte da bricolage. E a estes antepassados acrescentaria que o pintor também absorveu a expressão clânica ou a “teoria plástica das multidões” de Malangatana e o animismo dos pintores aborígenes australianos. Porém, o que é notável é ele lembrar-nos esses criadores e ao mesmo tempo preservar uma tão afirmada personalidade pictórica, só sua. Ou seja, João de Azevedo fez a síntese e magicamente delicia-nos, como todos os feixes de energia que se locomovem na água e embebem as raízes até que a árvore, impaciente, se põe a andar ou voa.
Ouviram por aí um cuco?
É o crocodilo do João a ensaiar um grito.
Ou talvez o griot tenha achado o seu silêncio.

Maputo,
António Cabrita
Abril 2018

17 quadros da exposição de Maputo - ABRIL - MAIO 2018. Portanto aqui publicados com um pouco mais de um ano e meio de atraso