domingo, 23 de janeiro de 2011

Uma auto-apresentação para a exposição de 3 de fevereiro em Lisboa

ALGUMA APRESENTAÇÃO, DOS CROCOS E MINHA
« Ce que je constate : ce sont les ravages actuels ; c'est la disparition effrayante des espèces vivantes, qu'elles soient végétales ou animales ; et le fait que du fait même de sa densité actuelle, l'espèce humaine vit sous une sorte de régime d'empoisonnement interne - si je puis dire - et je pense au présent et au monde dans lequel je suis en train de finir mon existence. Ce n'est pas un monde que j'aime. » Levy Strauss, 2005.
Estes crocodilos são uma consequência da minha estadia em Timor-Leste durante dois anos, desde Fevereiro 2005. As pinturas são feitas com tintas acrílicas, a sua maior parte sobre papel Fabriano de algodão 600- 850 gr.
A capa do disco do Zeca Afonso "Com as minhas Tamanquinhas" é o meu cartão de visita mais antigo, feita no Verão de 1975. Nascido em 1950, tinha então 25 anos. Foi por essa altura que parei com a pintura, quando vim de Itália para Portugal, onde passei a fazer outras coisas. Porém, em Itália, fui pintor activo, entre 1972 e 1975. Fiz duas exposições individuais e participei em várias colectivas (em Itália e fora). Parei então de pintar porque nessa altura me parecia desajustado fazer coisas para pessoas com dinheiro comprarem. Tive quase vergonha, hesitação, pouca autoconfiança. Queria mudar de vida, mas não sabia bem para que vida mudar. Deixei-me ir, durante muitos anos, sempre acompanhado pelos pincéis, que ficavam numa caixa fechada.
Desde então tenho participado, desde 1977, em actividades do (por vezes mau) desenvolvimento. Entre elas: quase 10 anos nas Nações Unidas, no Níger e, desde 2001 como consultor independente, em África e Ásia.
O recente regresso às pinturas deve-se, em primeiro lugar, à vontade de fazer trabalho manual. Fazer trabalhar as duas partes do cérebro, como alguns dizem. Passar por cima do determinismo que nos impele a manifestar apenas uma pequena parte dos nossos talentos, usar apenas uma parte do nosso corpo, a escolher ou a cabeça ou as mãos, ou outra parte qualquer. Sei que pintar me dá muito gozo; que o trabalho manual voltou a ter peso, que é mesmo necessário. Penso que para o futuro é preciso fazer um trabalho mais integrado, mais holístico. O pouco que sabemos sobre nós próprios aponta para essa necessidade: reintegrar as nossas forças, os nossos lados emocionais, os nossos lados espirituais, o nosso interesse pelo ambiente. É hoje difícil para mim imaginar que alguém se possa desenvolver sem nada acrescentar à qualidade de vida dos outros. Este é o tipo de coisa para a qual é difícil imaginar como falar delas (cito, indirectamente, Boyatzis).
Timor e as minhas citações dos crocodilos. Com os significados profundos dos crocodilos fui aprendendo na prática – e não só nos livros – que as sociedades primitivas não tinham os homens no centro do universo (desnecessário citar Lévi Strauss). A natureza e os outros seres vivos foram desvalorizados, “arrancando-lhes o homem para o colocar num lugar de eleição”, o que na altura foi considerado, no mundo ocidental, como uma conquista do Iluminismo. Esse desprezo pelo ambiente virá daí. Com Timor, com a minha vivência com aquelas pessoas, esta convicção “ganhou-me” para o lado dos crocodilos.
Estes animais têm ali uma ambiguidade significante, com alta densidade histórica. As lendas (isto é, a forma como se diz e se acredita na história) são povoadas pelos crocodilos. Apesar de algumas tentativas de normalização, eles continuam presentes no imaginário como parceiros dos sonhos e da vida real. Nessas narrativas tomam várias cores, segundo as zonas, as ocasiões, as intenções, as testemunhas. As mulheres de certos povos mauberes não são mulheres senão à vista, porque mal voltam as costas, são crocodilos. Um rei de um outro povo deu a filha mais velha ao crocodilo, para ganhar a guerra. Outro rei, de outro povo ainda, fez um acordo com os crocodilos para deixar passar os seus soldados, a fim de surpreender o inimigo invasor pela retaguarda.
Os crocodilos não atacam se estás tranquilo, se tens a “consciência em paz”. O desembarque dos Indonésios, em 1975, foi largamente anunciado por muitos crocodilos que apareceram na baía de Dili. A reparar bem, a própria ilha de Timor tem a forma de um crocodilo.
Há sempre uma narrativa segundo a qual “na semana passada” os crocodilos vieram e levaram 4, 5 ou 6 pessoas. Esses animais são a parte escondida e mágica do espírito timorense. Têm do bom e do mau. Eu cito essas histórias não para as ilustrar, mas porque procuro essa percepção, a humanidade nesses animais.
Acrescento que o crocodilo em Timor, tal como entre os aborígenes australianos (os últimos aristocratas, segundo Levy Strauss), e que eu consegui visitar, é um animal sagrado (lulik), sendo considerado pelos timorenses como antepassado. Daí o nome de avô, bei-nai. É o senhor das águas, o we-nai. Segundo o mito de origem, é considerado o responsável pelo povoamento de Timor.
Esses animais são geralmente muito respeitados, são rápidos e poderosos. Podem, de facto, atacar e comer pessoas. Toda a região está infestada. Na costa norte da Austrália é absolutamente proibido tomar banho nas praias, de Novembro a Abril. Eles pululam na baía de Darwin, por exemplo. São os saltwater crocodiles (Crocodylus porosus), que atingem facilmente 4 metros (às vezes mais) de comprimento, são ultrarápidos no ataque e vivem entre a água doce e a salgada. Existem desde há talvez 200 milhões de anos, são dos mais velhos sobreviventes, hoje espécies protegidas.
No meu caso, e com eles, voltando aos pincéis depois de tantos anos, jogo com as cores, para espantar e seduzir os parceiros e os públicos. Crocodilos homens e mulheres, e vice-versa, homens e mulheres crocodilos. Acasalamentos, pesadelos, combates; não ilustro nada, são citações de ocasiões que poderiam ter acontecido. Em Dili fui obtendo algum feed back. Uns velhos disseram-me: “Até parece que o senhor João estava lá!”.

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